Por Luiz Furtado Junior, Ana Midori e Amanda Costa, do time de especialistas do Saiani & Saglietti

Antes de tudo, cabe ponderar no presente artigo de maneira sucinta que o conceito de streaming surgiu nos Estados Unidos da América na década de noventa, porém, sua popularização e disseminação foi observada nos últimos anos com a facilidade do acesso à internet de banda larga e o constante interesse da sociedade pela utilização de novas tecnologias que permitissem o acesso a vídeos e áudios, praticamente, em tempo real o que, seguramente, deu efetividade e notoriedade a essas novas formas de transmissão de dados via internet.

A tecnologia de streaming consiste na disponibilização de dados, através da rede mundial, visando a exibição de conteúdo de vídeo e áudio com a possibilidade de armazenamento temporário das mídias sem que haja a transferência de propriedade destes dados, tendo em vista que não há o efetivo download do conteúdo. Podemos citar como exemplos Youtube, Netflix, Amazon Prime, Spotify e Deezer.

Diante do crescimento exponencial dessa nova forma de tecnologia, os entes políticos, mais especificamente, os Estados e Municípios têm buscado, cada um ao seu modo e de acordo com sua esfera de competência, regulamentar a incidência de tributos sobre streaming com a intenção de aumentar a arrecadação tributária e suprir os repetidos déficits orçamentários.

Nesse sentido, foram criados instrumentos normativos com o intuito de viabilizar a cobrança tanto do ICMS quanto do ISS sobre tais operações, criando conflitos de competência e dando início a discussões acerca da legalidade e constitucionalidade da incidência de tais impostos sobre o streaming.

Como é sabido, a Constituição Federal de 1988 ao tratar do Sistema Tributário Nacional, previu a repartição de competência tributária, determinando quais tributos poderiam ser instituídos e cobrados pelos seus entes federativos (União, Estados e Municípios). Tal medida impede que os entes federativos instituam impostos que extrapolem sua órbita de competência evitando, portanto, a usurpação de competência alheia e, consequentemente, o “bis in idem” em matéria tributária.

Conforme veremos a seguir, ao final de 2017 foram editadas diversas normas permitindo a incidência de dois impostos de competências distintas sobre as operações de streaming, o ICMS e o ISS. No âmbito estadual, o Conselho Nacional de Política Fazendária (“CONFAZ”) editou o Convênio ICMS nº 106 de 29 de setembro de 2017, o qual disciplinou a cobrança do ICMS sobre comercialização de transferência de dados via internet, como softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos e arquivos eletrônicos. Por outro lado, o referido Convênio em sua cláusula segunda[1] previu isenção das transferências eletrônicas dos dados anteriores à saída para o consumidor final.

Em relação à legitimidade passiva, o Convênio instituiu como contribuinte do ICMS a pessoa jurídica detentora do site ou plataforma eletrônica por meio do qual são disponibilizados os dados para transferência eletrônica. Neste ponto, vale ressaltar que o Convênio estabelece que o contribuinte deverá obter inscrição estadual em todas as unidades federadas em que realizar operações de saída dos dados, para emissão das respectivas notas fiscais[2].

Ademais, o Convênio previu em sua cláusula quinta a possibilidade de os Estados atribuírem a responsabilidade pelo recolhimento do imposto à terceiros, tais como: i) àquele que realizar a oferta, venda ou entrega do bem ou mercadoria digital ao consumidor, por meio de transferência eletrônica de dados, em razão de contrato firmado com o comercializador; ii) ao intermediador financeiro, inclusive a administradora de cartão de crédito ou de outro meio de pagamento; iii) ao adquirente do bem ou mercadoria digital, na hipótese de o contribuinte ou os responsáveis descritos nos incisos anteriores não serem inscritos na unidade federada de que trata a cláusula quarta; iv) à administradora de cartão de crédito ou débito ou à intermediadora financeira responsável pelo câmbio, nas operações de importação.

Nesse sentido, tendo em vista que o Convênio editado pelo CONFAZ prescinde da legislação Estadual para adequabilidade e exigibilidade da exação, os Estados vêm editando normas de forma a adaptar a legislação já existente, a fim de viabilizar a tributação por meio do ICMS das operações relativas ao streaming. Por exemplo, no caso de São Paulo, foi publicado o Decreto nº 63.099/2017, o qual introduziu alterações no Regulamento de ICMS (RICMS) e entrará em vigor a partir de 1º de abril de 2018.

Pois bem, por outro lado, a Lei Complementar nº 157/2017 que altera a Lei Complementar nº 116/2003 (definidora da estrutura básica de tributação do ISS) e incluí na lista anexa de serviços tributáveis pela aludida exação o “item 1.09” que determina a incidência do ISS sobre a “disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdo de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos”.

Apesar da inclusão do item 1.09 na Lei Complementar nº 116/2003, a cobrança do ISS sobre o streaming não é imediata, de modo que cada Município deverá alterar suas leis ordinárias para que o imposto incida sobre tais operações, devendo respeitar o princípio constitucional da anterioridade, previsto no artigo 150, III, b e c.

A partir daí alguns municípios passaram a editar normas a fim de regulamentar a cobrança de ISS sobre o streaming, como por exemplo a Lei nº 16.757/2017 e a Lei nº 6.263/2017, dos municípios de São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente.

Diante deste cenário, ainda restam muitas dúvidas a respeito da aplicação destas normas, além do conflito de competência existente entre Estados e Municípios, questões estas que, ao que tudo indica, serão levadas ao saturado e moroso Poder Judiciário.

Em recente decisão, proferida em março de 2018 (processo 1010278-54.2018.8.26.0053), referente a tributação da tecnologia de streaming uma associação civil sem fins lucrativos que representa os interesses das empresas do setor de tecnologia da informação e comunicação conseguiu uma liminar para afastar os efeitos práticos do Decreto nº 63.099/2017 editado com base no convênio ICMS nº106/2017. Resumidamente, foi alegado na ocasião que não se poderia admitir a incidência de ICMS sobre o software padronizado por transferência eletrônica através de download, bem como por acesso remoto, o chamado streaming (referente ao conteúdo acessado), com base em convênio e decreto, pois, isso arrepia a hierarquia normativa das leis e, afronta o disposto no artigo 146 da Constituição Federal, na medida em que apenas a lei complementar pode dispor sobre conflito de competências, em matéria tributária, entre os entes da federação; além de ser a única forma legítima de se regular limitações constitucionais ao poder de tributar e estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária tais como: base de cálculo, fato gerador, local da incidência, momento de incidência e sujeição passiva da obrigação tributária.

 

Em contrapartida, a Fazenda Estadual de São Paulo afirma que o Decreto e o Convênio, não inovam no ordenamento jurídico, mas apenas regulamentam uma materialidade preexistente, na medida em que o conceito constitucional de circulação de mercadoria não prescinde de um suporte físico (ADIn 1945) e, portanto, deve ser dado tratamento jurídico idêntico aos softwares de prateleira e aos softwares obtido através de download.

Contudo, a utilização da analogia feita pela Fazenda Estadual, leva-nos a considerar o histórico jurisprudencial a respeito da tributação do software, que vem sendo discutido há mais de duas décadas. Em 1998, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 176.626, o Ministro Sepúlveda Pertence, manifestou-se no sentido de que o licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador não configuram mercadoria, não havendo incidência de ICMS neste caso. Neste ponto, vale relembrar que o conceito de mercadoria sob a ótica do direito tributário restringe-se ao bem móvel sujeito à mercancia, sendo indispensável que haja a transferência da propriedade para incidência do ICMS. Logo, a incidência ou não do ICMS sobre tais operações está diretamente ligada à interpretação do conceito de mercadoria.

Mais recentemente foram ajuizadas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 5576 e 5659, as quais buscam afastar a cobrança de ICMS sobre as operações envolvendo programas de computador, porém, ainda aguardam julgamento no Supremo Tribunal Federal. Quanto à possibilidade de incidência do ISS sobre tais programas, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 688.223 reconheceu a repercussão geral do tema, porém este caso ainda aguarda julgamento.

Muito se discute se o streaming pode ser considerado uma prestação de serviços uma vez que se trata da disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdo de áudio, vídeo, imagem e textos por meio da internet. Em outras palavras, tal disponibilização configuraria obrigação de dar e não obrigação de fazer, distinção esta imprescindível para determinação da incidência ou não do ISS[3].

De forma inconclusiva, tudo indica que a tributação sobre a tecnologia de streaming será definida pelo Poder Judiciário, de modo que ainda não há como saber se as normas editadas pelos Estados e Municípios serão consideradas ilegais ou inconstitucionais. Assim, o caminho mais seguro para o contribuinte é se resguardar por meio da propositura de ações judiciais a fim de evitar o surgimento de um passivo tributário perante os entes da federação.

[1]Cláusula segunda: As operações com os bens e mercadorias digitais de que trata este convênio, comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados anteriores à saída destinada ao consumidor final ficam isentas do ICMS.

[2]Cláusula quarta: A pessoa jurídica detentora de site ou de plataforma eletrônica que realize a venda ou a disponibilização, ainda que por intermédio de pagamento periódico, de bens e mercadorias digitais mediante transferência eletrônica de dados, é o contribuinte da operação e deverá inscrever-se nas unidades federadas em que praticar as saídas internas ou de importação destinadas a consumidor final, sendo facultada, a critério de cada unidade federada: (...)

[3] A distinção entre a obrigação de dar e de fazer foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal com a edição da Súmula Vinculante nº 31: “É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”

 

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